Relatório sobre Cultura – Abril/2019

Quatro meses depois de tomar posse, o Governo Federal ainda não disse propriamente ao que veio ou o que quer em termos de Cultura. Além de alguns atos pontuais e isolados, em geral no clima do anti-intelectualismo reinante, em que se cortam verbas, projetos e pessoas, o que se tem mesmo é a sensação de que o momento cultural brasileiro continua a ser, como já foi dito, uma batalha de Itararé onde nada acontece, a não ser a perspectiva da paralisia generalizada, rumo à desolação total. O “deserto de homens e ideias”, antevisto por Oswaldo Aranha, o intelectual da Revolução de 1930, começa cristalizar-se no Brasil atual.

Para que não se diga que nada está sendo feito, no dia 22/4 o governo anunciou mudanças na chamada Lei Rouanet, área que parece ser o principal foco de atenção cultural da atual gestão. De repente, discutir Cultura no Brasil passou a ser só discutir Lei Rouanet: é de lamentar que, por injunções diversas, nosso debate cultural esteja se reduzindo a questões de financiamento e patrocínio, como se não houvesse outros aspectos fundamentais a considerar. Inclusive o principal deles, em torno do qual tudo deveria girar: a necessária formulação de uma Política Pública consistente para a Cultura no país, sem o que esta será apenas mera perfumaria.

Esse interesse exacerbado na Lei Rouanet pode ser explicado pelo fato de que, historicamente, foi com o advento das leis de incentivo que o papel do Estado frente a Cultura sofreu significativa inflexão, inclusive sendo diminuído no protagonismo que deveria ter quanto à sua responsabilidade social. Como aponta a História, o Estado brasileiro sempre foi o principal agente das formulações públicas sobre Cultura. Antes do século 20, a Cultura do país dependia basicamente do empenho pessoal de artistas, produtores e mecenas abnegados e, mais raramente, de eventuais benesses concedidas pelo Império aos criadores e empreendedores de reconhecida excelência. Nas primeiras décadas do Novecentos e ao longo deste, o acesso público a novidades tecnológicas como o disco fonográfico, o rádio e o cinema, fez com que novas disposições passassem a vigorar no mercado de bens culturais, com o que a presença do Estado brasileiro nas questões da área evidenciou-se com maior ênfase. Em rápida mirada, constatamos que o que ainda hoje temos de mais consistente em termos de Política Cultural pública no país foi produto do primeiro governo Getúlio Vargas (1930-1945), do qual muitos projetos seriam depois reabsorvidos pelos governos militares (1964-1985), embora com viés ideológico diverso.

Antes mesmo de chegar à chefia da nação, o ainda deputado federal Getúlio Vargas havia feito aprovar o decreto 5.492/1928, que estabelecia o pagamento de direitos autorais pelas emissoras de rádio e empresas que incluíssem músicas em sua programação, regulando ainda as empresas de diversões, a contratação de serviços teatrais e, principalmente a profissão dos artistas de variedades, que passaram a integrar oficialmente a classe trabalhadora brasileira. Foi mais adiante o Dr. Getúlio: já Presidente da República, promulgou a primeira lei em apoio ao cinema brasileiro, precursora da atual cota de tela (1932); criou o Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, junto a Gustavo Capanema, Rodrigo Mello Franco de Andrade e aos poetas Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade (1936); instituiu o Serviço de Radiodifusão Educativa, com o antropólogo Edgard Roquette-Pinto (1937); no mesmo ano de 1937, criou o Instituto Nacional de Cinema Educativo, o Instituto Nacional do Livro, o Serviço Nacional de Teatro e o Museu Nacional de Belas Artes; em 1940, criou o Museu Imperial e absorveu o patrimônio de um contumaz devedor do Estado para criar a Rádio Nacional, certamente o principal marco de nossa radiodifusão pública; de 1937 a 1944, Vargas deu suporte para que o maestro Villa-Lobos realizasse seu projeto educacional em prol de uma música culta de raiz nacional-popular.

Ainda que pareça paradoxal, muitas das prioridades culturais estabelecidas por Vargas continuaram na agenda dos governos do regime de exceção instaurado em 1964, inclusive sendo ampliadas em muitos casos. Foi o que se deu com a criação do Conselho Federal de Cultura (1966); com a criação da Embrafilme (1969) e da FUNARTE (que incorporou o antigo Serviço Nacional de Teatro, transformado em Instituto Nacional de Artes Cênicas, INACEN, sendo criado também um Instituto Nacional de Música e outros mecanismos culturais), em 1975. Outras iniciativas “varguistas” voltadas para questões prioritárias de Política Cultural pública também foram adotadas à época.

O fato é que foi devido à presença cultural do Estado, nas bases instituídas por Vargas, que o Brasil, de 1930 até tempos recentes, criou, produziu, divulgou, consumiu e exportou o melhor de sua produção cultural deste século, tanto em expressões individuais como coletivas. Mas tudo isso começou a desmoronar quando, em 1985, com a abrupta ascensão do governo José Sarney no bojo da Nova República, as tinturas neoliberais irromperam no debate nacional, trazendo com elas o princípio de que “o Estado não poderia interferir na Cultura”, para isso devendo destinar parte dos recursos públicos ao uso dos agentes culturais privados. Esse propósito, já presente na antiga Lei Sarney de incentivo à Cultura, depois foi levado ao extremo pelo governo notoriamente anticultural de Fernando Collor de Mello, que o estendeu à nova Lei Rouanet, quando o Poder Público praticamente abdicou do seu dever de governar, entregando a Cultura do país às forças do chamado mercado.

Pelo que vemos, as mudanças ora propostas à Lei Rouanet pelo governo Bolsonaro, ainda que busquem aprimorá-la, reincidem no mesmo equívoco conceitual de transferir, para a esfera privada, não apenas recursos públicos, mas principalmente o poder de deliberar sobre sua destinação. Com isso, não apenas o Estado renuncia ao seu papel de agente público e principal formulador das políticas culturais prioritárias ao país, como também associa-se indevidamente a projetos e interesses privados, subscrevendo-os e, o que é mais grave, financiando-os. Pelo que vemos até agora, a ênfase dada pelo governo à Lei Rouanet e ao patrocínio cultural privado revela apenas que sua visão de Cultura atrela-se principalmente ao midiatismo, à perfumaria dos eventos de massa e ao consumismo cultural em voga, em que as questões culturais de efetiva relevância nacional não têm vez. Considere-se ainda que o atual governo vem preferindo tratar sobre Cultura com as chamadas “forças produtivas” do mercado, em lugar de dialogar com as entidades de classe e organismos culturais da Sociedade Civil, que, por sinal, continuam tendo suas atividades controladas e engessadas por um emaranhado de portarias, decretos e instruções normativas provindas de instâncias inferiores do Executivo, em completo arrepio à liberdade de organização e funcionamento garantidas pela Constituição. Com essa dubiedade de conduta, fica evidente que, em termos de Cultura, o atual governo vem falhando não apenas em seus deveres como ente público, mas também no seu propósito de interagir com o setor privado.

Isto posto, frente ao atual momento em que se discute a política de financiamento à Cultura no país, talvez caiba às fundações e organismos culturais reunidos no Observatório da Democracia abrir um debate público em torno das seguintes linhas programáticas:

a) o retorno do protagonismo do Estado na identificação e na formulação das prioridades culturais públicas, em vista dos interesses da nação;

b) a revisão dos modelos de fomento e financiamento à Cultura, para além das desgatadas políticas de ‘incentivo’ baseadas na transferência de recursos públicos (via renúncia fiscal) para projetos e interesses privados; tal revisão teria por objetivo, entre outros:

  • limitar a possibilidade de os patrocinadores culturais receberem recursos públicos para projetos de interesse eminentemente privado; na concessão de incentivos, acolher preferencialmente os projetos culturais identificados como de prioridade pública;
  • priorizar os projetos voltados à preservação da memória cultural, do patrimônio e da história, ao experimentalismo e à pesquisa de novas expressões e linguagens, bem como todas as manifestações que não tenham espaço garantido no mainstream cultural e nos circuitos convencionais do mercado.

c) a revisão (e mesmo a revogação) do emaranhado de leis, decretos e regulamentos que, promulgados muitas vezes de forma abusiva, desnecessária e inconsequente, vem tolhendo o livre funcionamento das associações civis e entidades organizadas da Sociedade;
d) a reativação da interlocução e da cooperação cultural entre o Estado e a Sociedade, envolvendo especialmente os setores ligados à Educação, Universidade, escola pública, etc;
e) requerer o apoio do Estado aos artistas e às indústrias culturais independentes, tal como preconiza expressamente a Convenção pela Diversidade Cultural (UNESCO, 2005), da qual o Brasil é signatário;
f) requerer o cumprimento de outras disposições da mesma Convenção, tais como as que recomendam a adoção de medidas protetivas da produção cultural local (cotas de tela, etc) e o acesso das expressões da diversidade cultural aos meios de comunicação, questões sobre as quais o Brasil vem se omitindo vergonhosamente;
g) por fim, requerer o estrito cumprimento, pelo Estado brasileiro, das disposições sobre Cultura presentes na pouco lembrada Constituição Federal;

Marcus Vinicius de Andrade

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