Algumas ideias sobre o governo Bolsonaro


Três crises 

Dez anos após a grande crise de 2008, o mundo parece viver uma situação de aporia. Em diversos campos do conhecimento, multiplicam-se as interpretações de que estamos entrando em um novo tempo e que ele a princípio não parece animador. Não à toa, como notou o filósofo Slavoj Žižek, a produção artística e a indústria cultural estão tomadas por narrativas apocalípticas. Há uma sensação generalizada de que estamos vivendo o fim dos tempos, ou ao menos o fim de um determinado tempo. Essa situação, captada pelo mundo das artes e do entretenimento, é produzida por uma série de crises, das quais três são centrais e nos interessam mais diretamente. 

A primeira delas é provocada pela grande transição mundial ora em curso em direção uma ordem multipolar, consubstanciada na ascensão da China e no declínio relativo dos Estados Unidos. Fazem parte desse mesmo processo o protagonismo da Rússia e a ascensão de outros países da Ásia, com destaque para a Índia. Alguns autores têm preferido caracterizar essa transição como sendo a passagem a um predomínio do Oriente em relação ao Ocidente, ideia que sustenta também no papel geopolítico da Turquia e do Irã e no robusto e continuado crescimento econômico verificado em economias do sudeste asiático, agrupadas na ASEAN. 

Considerado o limite de tamanho, não cabe a este texto expor os números que revelam essa ultrapassagem, mas talvez seja suficiente olharmos para dois exemplos bastante simbólicos da última quinzena. Nos últimos dias foi anunciado que os chineses iniciaram a exploração do outro lado da lua e lá fizeram brotar uma semente, um feito amplamente noticiado, especialmente nos Estados Unidos. Isso acontece em meio ao enfraquecimento constante dos investimentos na NASA e do abandono de uma série de programas tocados pela agência espacial norte-americana. O segundo exemplo é o esforço concentrado, levado à cabo especialmente pelos Estados Unidos e pela Alemanha, contra a gigante chinesa Huawei — a empresa que mais vende smartphones no mundo e que tem colocado a Apple em crescente dificuldade ao se posicionar de maneira eficaz para ocupar o primeiro lugar na venda de aparelhos voltados à tecnologia 5G. Esses dois acontecimentos, ambos repletos de um simbolismo que toca especialmente o público norte-americano, são refrações desse processo global em curso.  

Um olhar para a história mostra que, até hoje, essas transições foram acompanhadas de grandes conflitos. Nenhuma potência dominante aceitou a perda de sua hegemonia sem lutar de forma denodada para mantê-la. Elas também resultam em mutações complexas no campo que podemos denominar como sendo o da cultura, da ideologia ou da superestrutura — o uso do conceito vai do gosto do freguês. Nesses momentos de disputa acirrada, a tolerância, a alteridade e as predisposições à convivência com os diferentes costumam ser substituídas pela estigmatização, pelo enfrentamento, pela naturalização e até mesmo pelo culto à violência. Correndo o risco de algum anacronismo, é possível pensar em transições com essa característica desde a Antiguidade.  

A segunda grande crise que vivemos é econômica. A verdade é que, depois de um período povoado de ilusões, vai se estabelecendo um consenso de que os remédios ministrados para vencer a grande crise de 2008 não curaram o paciente. Pelo contrário, colocaram a economia mundial em uma situação de difícil superação. Os trilhões empregados para o socorro dos bancos e das grandes empresas falidas ampliaram as dívidas dos países. Segundo o Banco Mundial, a dívida global acumulada atingiu 225% do PIB do planeta, número que tem contribuído para a grande incerteza em que nos encontramos.  O mundo vive sob um temor crescente de que uma grande recessão se inicie nos Estados Unidos no próximo período, com graves consequências para a economia mundial. Alguns bancos estimam que essa recessão se iniciará em 2020. Na Europa, as economias da Itália e da Alemanha também flertam com a recessão, apesar de inúmeros esforços para contê-la. A verdade é que os mecanismos tradicionalmente utilizados para estimular a retomada do crescimento econômico parecem ter perdido sua eficácia, ampliando em escala global o processo vivido há muitos anos pelo Japão, onde nenhuma medida contracíclica tem conseguido tirar o país da estagnação. Taxas de juros muito baixas já não conseguem incentivar a atividade econômica e, apesar de todos benefícios dados às finanças nas últimas décadas, têm levado importantes instituições bancárias a situações de grave dificuldade. A desindustrialização — provocada por mudanças tecnológicas, pelo predomínio dos interesses do capital financeiro e pela transferência de plantas produtivas que antes se encontravam nos Estados Unidos e na Europa para outras regiões, especialmente para a Ásia — gerou desemprego, destruição de cidades inteiras, liquidação de cadeias produtivas. Esse processo é acompanhado por uma queda continuada da renda média já que o emprego industrial tende a elevar a renda geral mesmo dos empregos não industriais, algo revertido em momentos de desindustrialização. 

A terceira grande crise é ainda embrionária, mas tem dimensões absolutamente catastróficas, mesmo segundo os analistas comprometidos com a atual ordem neoliberal. Trata-se da chamada Revolução 4.0, que promete mudar completamente o mundo do trabalho, com consequências sociais assustadoras e ainda imprevistas. Combinadas, a inteligência artificial, a robótica, a internet das coisas, os veículos autônomos, a impressão em 3D, a nanotecnologia, a biotecnologia, a ciência dos materiais, o armazenamento de energia e a computação quântica devem mudar de maneira assombrosa boa parte das relações humanas. Essa revolução significará a destruição de milhões de postos de trabalho, o fim de centenas de profissões. A destruição do trabalho provocada pelo neoliberalismo, catapultada a níveis inimagináveis pela Revolução 4.0, formará uma massa enorme de descontentes, de desesperados, que tendem a ser uma ameaça de grande monta ao sistema. O McKinsey Global Institute, mais importante consultoria do mundo, estima que quase metade dos empregos atuais são vulneráveis a serem substituídos por robôs e que dois terços das crianças que começam a escola hoje ou terão empregos que ainda não foram inventados ou não terão empregos. Engana-se quem pensa que essa vulnerabilidade incide apenas sobre os trabalhos de baixa qualificação: a perspectiva é que diversas profissões qualificadas também sejam afetadas, como jornalismo, direito, tradução e até alguns campos da medicina. Se o capitalismo sempre teve problemas em lidar com uma massa empregada e com um exército de reserva reivindicando direitos, o que fazer com um incrível e inédito número de pessoas sem qualquer perspectiva? 

Uma nova divisão da classe dominante 

Os setores dominantes estão, portanto, diante de três grandes crises: a ascensão da China e de outras potências do Oriente, que preparam sua ultrapassagem em relação aos Estados Unidos/Ocidente; uma crise econômica que tem se mostrado resistente aos mecanismos clássicos que o capitalismo desenvolveu para administrar suas crises e para a qual fica cada vez mais difícil encontrar uma alternativa dentro dos marcos do capitalismo contemporâneo; os impactos da Revolução 4.0 sob a massa trabalhadora, o que tende a criar uma imensa e inédita massa de deserdados que pode colocar as bases do sistema em risco. 

As classes dominantes do Ocidente se dividiram em como lidar com essa tripla crise. De um lado, existem os que consideram que o melhor caminho é a manutenção do modelo político liberal-constitucional erigido durante o século XIX; de outro, há os que consideram que esse modelo caducou e que, para manter a reprodução ampliada do capital em sua atual fase seria preciso adotar um modelo que suprima os limites colocados por esse regime. Uma divisão análoga, ainda que não idêntica, aconteceu na década de 1930 diante do impasse de como lidar com a crise de 1929. Naquele momento, no entanto, havia uma terceira corrente, representada por setores da burguesia que procuraram uma alternativa econômica que não fosse liberal, buscando resolver a crise com uma combinação de esforço estatal pela retomada do desenvolvimento, com forte preocupação em combater a miséria, gerar empregos e prover alguns direitos sociais. Essa corrente hoje é inexistente ou inexpressiva entre as classes dominantes. 

Voltemos aos dois paradigmas de dominação em choque nos dias de hoje. O primeiro modelo, que mantém a aposta na constituição e no liberalismo político, é preciso que se diga, demonstrou-se absolutamente comprometido com neoliberalismo. Conduziu a destruição de direitos sociais, a precarização do trabalho, a privatização, o desmonte de mecanismos de garantia do bem-estar social. Para viabilizar esse programa, este setor não vacilou em golpear fortemente a democracia, transferindo parte importante do poder decisório para as grandes corporações e para organismos internacionais como a União Europeia, o Banco Mundial e o FMI. Gente a soldo do mercado, absolutamente comprometida com os interesses da banca, ocupou os mais importantes postos de gestão da economia nos governos dirigidos por esses grupos políticos em todo o mundo. Esses postos, ocupados por gente supostamente técnica, “infensa às pressões da política”, foram blindados, recebendo em alguns lugares autonomia formal, em outros uma autonomia de fato para a gestão dos negócios públicos, com graves consequências para a democracia. Nos países em desenvolvimento, esse setor deixou de lado projetos de desenvolvimento nacional, de industrialização, de modernização, de combate às desigualdades e quaisquer posturas autônomas frente às potências mundiais o que, por si só, representa um ataque indireto à democracia. 

Apesar disso tudo, esses setores defendem a manutenção do velho modelo do liberalismo político construído no século XIX e estão em combate contra a ultradireita reacionária. Seu projeto é enfrentar a crise mantendo as eleições, o parlamento, a divisão de poderes, as garantias individuais, a liberdade de imprensa, os princípios basilares do penalismo iluminista, o direito de livre organização, manifestação e pensamento — ainda que todos esses pilares sejam relativizados quando entram em choque com os interesses do grande capital.  Dito de outra maneira, apesar do conteúdo inevitavelmente antidemocrático do projeto neoliberal, esses setores defendem a manutenção das características fundamentais dos regimes constitucionais-liberais instaurados no período posterior à derrota da Revolução Francesa e alargados pelas lutas dos trabalhadores e trabalhadoras durante mais de um século. 

O segundo grupo, ultradireitista, considera que, para enfrentar essa tripla crise, é necessário abrir mão do liberalismo político e dos regimes constitucionais clássicos. Por trás de toda a inflamação retórica nacionalista, sua conclusão é a de que os regimes liberais geram instabilidade política, sendo obstáculos para a retomada do desenvolvimento, para a pilhagem mais eficaz das economias subordinadas, para a hiper-exploração do trabalho e para o necessário descarte em massa dos indesejáveis. Para eles, a instabilidade oriunda do liberalismo político e do regime constitucional seria ainda uma desvantagem competitiva em relação a regimes mais planificados e centralizados, como o da China. Para conter o avanço chinês ou asiático seria preciso liquidar as garantias constitucionais e a democracia tal como a conhecemos. 

Os grupos políticos ultradireitistas nos quais essa fração das classes dominantes passou a se apoiar estão por aí faz tempo. A novidade é a sua adoção por esses pesos pesados das elites econômicas. O grau de desenvolvimento desses grupos em países como a Alemanha, Áustria, Itália, Hungria, Suécia, Estados Unidos e Brasil demonstram que já não se trata de livre atiradores de direita manejando um discurso eleitoral eficiente: parte importante dos grandes agentes da burguesia internacional aderiu ao caminho do estabelecimento de uma ditadura terrorista do capital financeiro. 

Apesar de terem como objetivo a destruição do regime liberal-constitucional, seus líderes passaram pelo crivo das urnas e mantém índices de apoio relevantes. Além disso, mantém grandes massas de apoiadores ativos e mobilizados permanentemente, uma espécie de vanguarda ampliada em ação diuturna. Isso é feito através da defesa de ideias xenófobas, conservadores e supremacistas cujo repertório é adaptado às características concretas do país em questão, colando-se a preconceitos preexistentes em cada local e potencializando-os. O sentimento religioso também é manipulado, distorcido e mobilizado para a defesa de suas posições. De todos esses sentimentos, um deles é particularmente decisivo em todas essas experiências: a questão da segurança. É como se essas forças tivessem conseguido erigir um novo paradigma hobbesiano, com uma massa imensa de pessoas se dispondo a abrir mão de sua liberdade, da democracia, até mesmo de algumas de suas vantagens materiais, em nome de um Estado capaz de combater um inimigo ficcionalizado. Este, em geral, é um tipo múltiplo, prismático, indefinido: é o cigano, o ladrão, o comunista, o imigrante, o negro, o estrangeiro, o mendigo, a mulher, o gay, o esquerdista, aquele que de algum modo fantasioso irá ameaçar seu modo de vida. 

Essa segunda fração das classes dominantes tem conseguido mobilizar aquilo que Luigi Ferrajoli denominou de poderes selvagens: uma massa da população que está disposta a, em nome da segurança, do combate a esse inimigo ficcionalizado e prismático, destruir as garantias individuais, os direitos estabelecidos por constituições e códigos. Para isso, têm contado com o apoio de amplos setores do judiciário que estão dispostos usar o processo penal como instrumento persecutório de uma caçada que é  cirúrgica a inimigos políticos e  massiva indiscriminada contra os mais pobres. 

Todo esse processo sustenta, direta ou indiretamente, de forma consciente ou não, uma das necessidades fundamentais do capitalismo atual e do que vem com a destruição do trabalho produzida pela Revolução 4.0: o descarte em massa dos indesejáveis. Quando dois governadores de Estado, avisam a menos de uma semana das eleições no Brasil que em seu governo a polícia irá atirar para matar — ou “mirará na cabecinha” — era exatamente esse mandato que estavam buscando. 

O governo Bolsonaro 

O governo Bolsonaro é a expressão brasileira desse fenômeno. Aqui, como no resto do mundo, a vitória eleitoral da candidatura do PSL só pode ser explicada pela adesão de uma parcela importante das elites econômicas do país à via da violência, da destruição da democracia e da remoção das garantias individuais e constitucionais para a implementação de suas políticas coloniais e ultraliberais. Considerada essa origem, o signo mais importante que caracteriza o governo Bolsonaro é sua marca antidemocrática que se manifesta em múltiplas dimensões. Não à toa, os setores do judiciário que já se ocupavam de uma atividade persecutória realizada para além dos limites do Estado democrático de direito foram ao centro do poder com sua eleição. Salvo exista uma contra tendência, representada por uma ampla frente democrática capaz agrupar setores muito diversos da sociedade e servir de elemento de contenção, viveremos um recuo enorme nesse quesito. A cultura de violência, o ódio aos adversários, o revisionismo sobre o papel da ditadura militar, a intolerância com qualquer tipo de divergência, o sufocamento das universidades e escolas, obscurantismos de toda a espécie, perseguições às minorias, desconsideração das garantias penais mínimas, usos do direito penal para a perseguição aos movimentos sociais e às lideranças de oposição, todos processos que vinham, de um modo ou de outro, fazendo parte da cena política desde antes da ruptura democrática de 2016, tendem a ser muito ampliados. 

O programa apresentado por Bolsonaro e pelos principais líderes da campanha é marcado, em segundo lugar, pela demolição de conquistas civilizatórias que vêm desde a década de 1930. A privatização de tudo, a ampliação da reforma trabalhista com remoção dos direitos que restam, o desmonte dos serviços públicos, a cobrança de mensalidade nas universidades, o fim das vinculações orçamentárias constitucionais que, combinadas com o teto de gastos, significam o completo desmonte do frágil aparato de direitos sociais que o país mantém, uma política de segurança pública oficial e velada que levará ao extermínio e ao encarceramento em massa dos indesejáveis, a destruição da previdência pública, etc.

Diante de um programa assim e da vinculação orgulhosamente bovina aos interesses dos Estados Unidos, podemos dizer que estamos sob um verdadeiro governo de ocupação. Ele assemelha-se às administrações colaboracionistas coloniais, cuja atividade fundamental era gerir a extração das riquezas que interessavam à metrópole de maneira eficiente. A semelhança não é mera coincidência: um dos mecanismos mais importantes para a gestão da atual crise é a transformação das economias dos países em desenvolvimento em repasto de uma nova acumulação primitiva de capital. 

Ele também opera para transformar o Brasil em uma base da luta para conter ou adiar o processo de transição mundial ora em curso. O oferecimento de uma base militar para os Estados Unidos, as provocações ultrabelicosas contra a Venezuela e o início do incentivo estatal a uma cultura sinofóbica não são apenas expressões do núcleo folclórico do governo, ainda que se manifestem de forma atabalhoada. Essas são atitudes dotadas dessa lógica entreguista. Na verdade, diante do estado de crescente conflituosidade que o mundo vive, o governo Bolsonaro insere o Brasil na rota das possíveis colisões belicosas. 

Mesmo sendo dotado de um projeto claro, o governo Bolsonaro começou muito mal. A imperícia dos escolhidos do presidente para administrarem a máquina pública, a inaplicabilidade à gestão de Estado de parte importante das ideias do grupo e, especialmente, os escândalos envolvendo a família Bolsonaro, criaram um cenário de decepção para parte de seus apoiadores. Tem especial importância a revelação de indícios de ligação do grupo mais próximo do presidente com as milícias do Rio de Janeiro, linha de investigação que ainda está em seus primeiros passos. A Rede Globo, ameaçada pelos compromissos do governo com os detentores da Rede Record, tem sido ponta de lança do desmascaramento dessas vinculações. 

Há divisões diferentes, mas é possível olhar o governo como sendo composto por sete setores: militares, lavajatistas, políticos, evangélicos, mercado, e olavistas – os nomes são auto-explicativos. Em um mapa muito precário e impreciso, podemos dizer que as áreas mais relevantes do governo ficaram divididas da seguinte forma: o Ministério da Economia, a presidência dos bancos públicos, o Banco Central e metade do Ministério de Minas e Energia ficaram nas mãos do grupo do mercado. Os militares, que detém, entre todos os grupos, a maior participação no governo, dominam a Defesa, toda a área de infra-estrutura, a Ciência e Tecnologia e dividem com os olavistas o Ministério da Educação e com o mercado o Ministério das Minas e Energia. Os olavistas, por sua vez, controlam todos os principais cargos das Relações Exteriores e têm postos relevantes na Educação, incluindo o ministro. Os políticos – ressalte-se a precariedade da caracterização desse grupo, considerando-se a miríade de interesses diversos — controlam o Ministério da Saúde, a Anvisa, a Casa Civil e a Secretaria Geral da Presidência. Os evangélicos ocupam parte do ministério da Família, que dividem com os “políticos”. 

Dessa composição, saltam aos olhos dois dados. O primeiro é a sub-representação de membros do parlamento. Para ampliar a questão, o líder do governo é alguém recém-eleito, sem qualquer trânsito na casa. Há, ainda, uma sub-representação do grupo evangélico, base importante para a eleição de Bolsonaro e que reclamou explicitamente de seu escanteamento durante a montagem do governo, o que pode indicar uma possível dificuldade da gestão em aprovar seu programa. O segundo dado é a forte presença de militares na máquina governamental. O mapa precário que apresentamos acima mostra um grande número deles e tratamos apenas de alguns do cargos mais importantes. Levantamento realizado pela Folha de S.Paulo mostra que já são 45 militares espalhados por 21 áreas do governo. É difícil tirar todas as consequências desse processo. Por um lado, é possível pensar que o setor impeça um processo muito radical de entrega do patrimônio nacional, se não em áreas decisivas para o desenvolvimento econômico, ao menos em áreas estratégicas para a defesa. Por outro — e isso nos parece mais grave e preocupante — a grande presença militar pode ampliar as tentações autoritárias e o sentimento refratário à alternância de poder. 

Parecem existir quatro linhas de tensão fundamentais em relação ao governo, que podem ser aproveitadas na luta política. A primeira delas é a que se dá entre governo e oposição progressista. Estamos nominando como oposição progressista os setores antípodas do governo tanto na questão democrática quanto na política econômica e social. Isso inclui partidos, movimentos sociais, intelectualidade, parcela da igreja católica, etc. A segunda linha de tensão é a que se dá entre o governo e setores que, apesar de serem liberais em matéria econômica, defendem a manutenção das garantias constitucionais e do regime democrático. A terceira linha de tensão é a que se dá entre o governo e a opinião pública internacional, aí incluídos tanto organismos da sociedade civil e indivíduos comprometidos com uma pauta progresssista quanto governos que, por interesses diversos, possam contribuir na defesa das garantias individuais contra as perseguições vindouras. A quarta linha de tensão é a que se dá no interior do próprio governo, dentro do complexo condomínio que detém as rédeas do país. Nesse caso, tanto interesses quanto ideias divergentes podem e devem ser exploradas pelas oposições. Em um momento complexo como o que vivemos, produto de uma série de derrotas consecutivas e de grande monta, qualquer divisão no campo adversário é um recurso decisivo para conter a violência do governo de ocupação contra a democracia e para preparar a ofensiva democrática futura. 

Julio Vellozo, professor universitário e secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. 

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