Cultura da informação e da comunicação para a democracia em rede

Ensaio orientador produzido para a mesa : Mídias sociais: Como se comunicar com as bases, realizada no dia 2/2/2019, pela Fundação João Mangabeira para os seis segmentos partidários do Partido Socialista Brasileiro(PSB).

Este texto é um ensaio em torno do que tenho escrito sobre redes e do queencontrei em leituras recentes. Os autores utilizados estão citados ao final do texto, sempre que possível, com os links para os textos originais. A ideia é que a leitura sirva de roteiro para oquestionamento quanto às próprias ações em rede, para acompreensão de que somos atores em múltiplas redes. Espero que sejaponto de partida, abertura para muitas dúvidas e muitos caminhos derespostas.

O texto está dividido em duas partes. A primeira, trata da rede, sua estrutura e composição: os atores, que podem ser pessoas e/ou coisas; os laços, afetivos ou não, que unem as pessoas; as formas como as pessoas se agrupam. A segunda parte é dedicada a tratar de alguns atores específicos que interferem em nossa vida cotidiana –para o bem, ou para o mal – como as plataformas que usamos para troca de informações, diversão, trabalho. O objetivo deste encontro é criarmos um pacto por uma cultura da informação e da comunicação, ética, verdadeira, essencial para a defesa da democracia.

 IOque é rede

A  rede pode ser definida como um conjunto de atores – humanos ou não– que se ligam de alguma forma, em um ambiente digita1ou não, num contexto social. Pode ser a rede elétrica, com cabos que saem de grandes estações e se distribuem até a energia chegar nas casas, fábricas etc. Pode ser uma rede de militantes feministas,pluripartidária, organizando a greve do 8 de março. Pode ser o grupo LGBTQI de um partido. O próprio partido político é uma rede.Entre estas redes transitam outras, governamentais – de assistência, de saúde, de educação – também denominadas redes sócio-técnicas. Há, claro, a rede formada pelos aparatos tecnológicos, por programas e aplicativos, que entremeiam nossas relações de forma quase invisível.

Há,ainda, redes territoriais caracterizadas pela heterogeneidade dos atores, como por exemplo a rede que compõe a escola, constituída de professores de diferentes áreas do conhecimento, de estudantes emdiferentes estágios de formação, competências e habilidades, e deservidores técnicos de variadas especializações e funções de apoio à Educação naquele território. Também podem ser consideradas territoriais as redes formadas por moradores de um bairro, o sindicato que abrange determinada região.

A rede pode ser considerada uma organização, um recorte da grande teia social, e tem como características ser de representação efêmera e mais horizontal do que hierarquizada. As redes são sistemas fluidos de interação e de participação multidirecionais,que estimulam o ambiente de conversação entre atores em torno de objetivos comuns e demandas coletivas. O que levar em conta ao pensarem rede:

  • Ninguém age isoladamente – pessoas, instituições, grupos ligam-se a outras pessoas, instituições e/ou grupos por diferentes razões;
  • Há vínculos fluidos entre grupos porque os componentes mudam permanentemente;
  • As redes não são randômicas. Na vida real, elas têm uma organização sem escalas, marcada por formação de hubs que concentram links; mas o acaso e o aleatório também cumprem papel na construção da rede;
  • As redes reais não são estáticas;
  • Há uma hierarquia entre os hubs;
  • Não há um nó que, sozinho, desmantele a rede;
  • As redes reais são auto-organizadas.

Composição da rede: nós e laços

 Oator na rede é um ser e pode ser objeto, é humano/não-humano,híbrido, ubíquo, móvel, diverso, multivocal. Quando se observa a rede, o que se pode ver é sempre uma fotografia, um conjunto de sinais, de indícios do ser coletivo. O ideal é que a rede se observe, conheça suas características, semelhanças,particularidades etc. Que tipo de atores fazem parte das redes:

 as pessoas– Numa escola, por exemplo, são alunos e alunas, monitores,técnicos e técnicas, professores e professoras, pesquisadores etc.Sem esquecer que há atores não envolvidos diretamente, mas que afetam a rede. Motoristas de transporte público e ou equipamentos públicos de transporte compõem uma rede que interfere na dinâmica de muitas outras redes sociais quando há paralisação de atividades, seja por uma greve, ou pela quebra de um equipamento;

as coisas– ainda no exemplo escolar, material didático (livros/documentos físicos ou digitais), bibliotecas e repositórios, equipamentos necessários como computador e celulares, provedor de internet, tamanho da banda etc;

as  “pessoas” jurídicas e/ou institucionais– representantes institucionais, autoridades legais, empresas parceiras, ONGs etc;

as ideias– referências bibliográficas, os links relacionados ao tema de aprendizagem, como entrevistas, reportagens, artigos científicos formam uma rede específica de conhecimentos disponíveis para apoio ao aprendizado crítico.

Os atores na rede não são iguais, desempenham papéis diferentes, têm capacidades diversas e ligam-se a outros atores em relações, os laços, que também são variadas. Com base em possibilidades estatísticas das relações em rede, há cinco tipos de atores que se destacam no processo de mediação da informação:

Coordenador: o fluxo de informação é muito forte em torno deste indivíduo, que se destaca pela relação que mantém com o ambiente do grupo/rede.Na estrutura atual da organização das redes, no formato de coletivos, este é um papel que dura o tempo de execução de ações envolvendo vários atores em que a coordenação orienta o trabalho colaborativo;

Representante:indivíduo do grupo que regula o fluxo da informação, ou bens,deste grupo para o ambiente externo, para outras redes ou grupos.Também pela estrutura atual de coletivos e pela característica horizontal das redes sociais, as ações se desenvolvem em períodos definidos e específicos;

 Intermediário itinerante:é um ator externo ao grupo, mas que é utilizado como mediador entre dois membros do grupo. Aqui pode ser identificada a figura de consultores ou outros especialistas convidados a contribuir em questões específicas como mediadores de conflito, por exemplo;

Gatekeeper:indivíduo externo ao grupo e que regula o fluxo de informações ou bens desse ambiente externo para com os integrantes do grupo. Tem como capital a credibilidade para orientar e regular o fluxo das informações. Aqui se encaixa a figura de produtores, difusores e orientadores de comunicação e de informação, como jornalistas, bibliotecários, documentalistas, professores,multiplicadores. A rede não-humana formada por mídias digitais que oferece vídeos, tutoriais etc. também exerce o papel de Gatekeeper;

Ligação:indivíduo que media as relações entre pessoas de grupos diferentes sem pertencer a qualquer um deles.

Em geral desenhados como linhas contínuas que unem os nós (atores humanos e não-humanos) e conformam o que se denomina rede, os laços têm que ser vistos também em sua multiplicidade e complexidade.Laços são relações simbólicas (de afetos, de estatutos e normas,de ideias, de miríades de possibilidades) espontâneas ou programadas, humanas ou não. São materializadas em documentos de diferentes tipos, conteúdos, formatos e suportes. Laços podem ser direcionados, bidirecionados; podem ser fracos ou fortes; podem ser densos.

Como se conformam as redes complexas

As redes complexas, humanas ou não, têm três características em comum: a aglomeração (formação de clusters);a existência de pontos de forte conexão (hubs);e a distância por poucos graus de separação (smallworlds).A primeira característica é a de agrupar-se, criar panelinhas,estar em bolhas, ou, o que tecnicamente no estudo de redes se denomina cluster.No caso humano, as pessoas reúnem-se em torno de interesses comuns:familiaridade, segurança, intimidade, amizade, proximidade geográfica, temas de interesse, trabalho, cultura. Alguns desses grupos são muito próximos e todos se comunicam com todos, formando o que se denomina cliques, redes coesas, que em geral são pequenas.Neste tipo de rede, costumam circular sempre as mesmas informações.Os laços entre os atores dos cliques são fortes e indicam que há confiança e comprometimento de todos, bem como é clara a definição de responsabilidades.

Os espaços de ocupação rarefeita, de atores esparsos, são chamados buracos estruturais, que comprometem a troca de informação. Estão neste caso, por exemplo, pequenas comunidades isoladas, localizadas em regiões de difícil acesso. Os agentes de saúde que vão às regiões distantes são nós que mantêm laços fracos com estas comunidades, levam atenção do Estado e informação nova. É por meio dos laços fracos que se chega a essas redes distantes, que se pode aproximá-las de outras redes. Estudos estatísticos de rede indicam que há mais probabilidade de conseguir emprego, por exemplo,por meio de um laço fraco, alguém de fora da rede mais próxima,pois as informações novas chegam por meio destas conexões. É também por estas relações fracas que circulam os boatos, as notícias falsas. Os laços fracos acabam tendo muita força, na medida em que trazem o novo e são a possibilidade de conexão com alguém ou algo distante.

A segunda característica comum às redes complexas é a formação de hubs.O termo em inglês utilizado no estudo de redes vem originalmente do conceito usado pela aeronáutica para denominar os aeroportos que proporcionam a conexão, por meio das rotas dos aviões, com um grande volume de outros aeroportos. Os  hubs atraem outros atores exatamente por serem nós dotados de um número extraordinariamente grande de links e conexões. Este comportamento de concentração de atores em torno de hubs, como indicam pesquisas realizadas desde os anos 1990, é comum às redes complexas, sejam elas humanas, celulares, de transmissão de energia ou computacionais. A existência de hubsi ndica que não há igualdade na rede, que há atores que são mais acessados, procurados e visitados por outros. E a existência dos links é o que fortalece o hub em relação a outros tipos de atores.

 A terceira característica comum às redes complexas são os smallworlds, os mundos pequenos, que representam a proximidade de todos na rede, a partir da observação das conexões dos atores. Com poucas conexões,podemos acessar pessoas, informações, coisas em todo o planeta,pois por esta teoria, uma pessoa está a seis ou sete passos de qualquer outro ser humano na Terra, por exemplo. Mundos pequenos ou smallworlds éa denominação do fenômeno de proximidade entre atores,especialmente com a aceleração promovida pelas tecnologias que, em poucas conexões, ligam todo o planeta. É pela conexão dos mundos pequenos que circulam as pirâmides, por exemplo. O golpe da pirâmide financeira surgiu nos EUA em 1920, e volta a circular nas crises financeiras. As pessoas são estimuladas a depositar dinheiro na conta de pessoas que depositam na conta de outras pessoas e assim sucessivamente, até atingirem um número em que não há mais pessoas para entrar na roda, ninguém mais paga e só os primeiros ganham. Durante a eleição de 2018, o fenômeno da pirâmide alimentou com notícias falsas uma rede que se expandiu como círculos formados em torno de uma pedra jogada na água.

Comunicação: das massas às teias

Se olharmos a estrutura da comunicação de massas, que foi a tônica do século XX, ela é concentradora da informação em grandes hubs emissores – a televisão, o rádio – e pouca, ou rara, interação.O capital se apropriou da comunicação humana e, por meio das indústrias culturais (em que a mídia tem papel importante), passou a definir os assuntos a serem tratados, a visão de mundo a ser apresentada, mas sempre com algum contraponto, para se mostrar democrática. Os tradicionais meios de comunicação ainda buscam reorganizar o modelo de negócio nascido da comunicação de massas –de informação distribuída de poucos para muitos, de forma pouco dialógica. Caçam cliques, não querem conversa.No século passado, poucos veículos reuniam informações a serem disseminadas nos telejornais, por exemplo. Essas informações eram estruturadas em um texto padrão para atingir a média da população,o Bart Simpson, como personagem modelo de público para o Jornal Nacional, descrito em conversa de William Bonner com estudantes de jornalismo em visita à TV Globo. O modelo privado da comunicação,no Brasil, teve como contrabalanço à hegemonia as emissoras públicas, as fundações, sempre dependentes de dinheiro escasso do orçamento público.

Na comunicação em rede, é necessário atentar para a diversidade, mas buscando compreender que há questões gerais em comum a muitos grupos, que há subgrupos que se formam por determinadas particularidades, e que há os indivíduos, que são únicos. Tudo ao mesmo tempo e agora. Neste novo cenário, a informação e a comunicação se distribuem em redes complexas, que se agrupam e desagrupam, buscam hubs e se encontram em poucos cliques neste mundo pequeno.

Há mudança na comunicação e no trato da informação no planeta. A comunicação de massas está em cheque, o modelo de poucos emissores para muitos receptores se dilui em redes, agora dominadas pela interferência do algoritmo. A informação é o dinheiro – como coisa que se pode guardar, copiar, mexer, fazer, distribuir etc.Quando se fala da comunicação em rede, leva-se em conta a utopia da comunicação de todos para todos, mas observa-se a prática da comunicação de um para um, de um para alguns, de alguns para alguns, de um para muitos, de poucos para muitos, de muitos para muitos e todas as combinações que a estatística permitir.

A rede precisa se (re)conhecer

A  rede precisa conhecer os atores que a compõem, conseguir informações coletivas: quem somos? o que nos une? o que queremos fazer juntos? oque podemos fazer? o que sabemos fazer? o que podemos ensinar? o que precisamos aprender? quem conhece quem? que subgrupos a rede tem?quem, ou o quê é hub na rede? quais papéis existem na rede e quem exerce qual? Mesmo com as respostas a estas questões, é preciso compreender que o que se pode ver da rede é sempre uma fotografia,um conjunto de sinais. A rede, portanto, tem que ser acompanhada em sua permanente movimentação.

Além do conhecimento dos atores, também é necessário compreender as linguagens que intermedeiam as relações no campo digital. A primeira que abordo aqui é a do AV32,uma linguagem fruto da convergência das tecnologias, que possibilitam conjugar esses modos de expressão de forma criativa. As duas outras linguagens estão ligadas ao pensamento computacional: o algoritmo e a websemântica.

As características do AV3 são as seguintes:

Interatividade– possibilidade de diálogo entre o indivíduo e o sistema e de indivíduos entre si através do sistema;

Hipertextualidade – a possibilidade da interconexão de conteúdos múltiplos;

Hipermidiação– combinação da informação em suas múltiplas dimensões– texto, áudio, imagem estática e em movimento – para gerar um conteúdo de lógica discursiva não linear;

Hiperatualização– alimentação permanente de informações feita por bilhões de pessoas e/ou máquinas programadas para produzir conteúdo;   

Mobilidade– os dispositivos móveis, como notebooks, celulares e tablets, fazem com que as informações sejam produzidas, publicadas e/ou acessadas de qualquer lugar;

Ubiquidade– um mesmo conteúdo pode ser acessado ao mesmo tempo de diferentes lugares, por pessoas e/ou máquinas diferentes;

Multivocalidade– a produção coletiva e colaborativa que caracteriza a rede resulta num conteúdo que reflete muitas vozes;

 Hibridismo– mistura das diferentes linguagens, que acaba por produzir uma narrativa denominada transmídia, em que a história inteira é contada aos pedaços, com a utilização de mídias, formatos e plataformas diferentes que se complementam; esta história fragmentada se expande de modo a atrair audiência para o assunto tratado.

 As instruções para montar um brinquedo, ou um móvel, para sair de um lugar e chegar a outro são o que se denomina linguagem algorítmica,que resume um conjunto de dados de entrada, as variáveis envolvidas e a descrição passo-a-passo do que se vai fazer com esses dados e variáveis para chegar a determinado resultado, os dados de saída. Mais fácil compreender com o exemplo da receita de bolo:

Algoritmo Receita de bolo
Dados de entrada Ingredientes – farinha, ovos, açúcar etc.
Variáveis envolvidas Materiais usados – formas, forno, batedeira ou processo manual
Passo-a-passo para utilizar dados de entrada e variáveis Modo de fazer – descrição passo-a-passo sobre uso de ingredientes e materiais
Dados de saída O bolo

Na matemática, o algoritmo é definido como uma sequência finita de regras, raciocínios ou operações que, aplicada a um número finito de dados, permite solucionar classes semelhantes de problemas. No campo da informação, diz respeito ao conjunto das regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas. Estas instruções não podem ter ambiguidades. O algoritmo é a linguagem para programar os computadores que utilizamos no dia-a-dia, mesmo quando não o percebemos. Não é o programa em si, mas a orientação dos passos que a máquina deve percorrer para executar uma tarefa. O conceito de algoritmo foi formalizado pela primeira vez em 1936, com a máquina criada pelo matemático britânico Alan Turing, precursora dos computadores digitais. A Máquina de Turing, como é denominada,tratava de aspectos lógicos, conceito que ele utilizou para quebrar os códigos secretos das comunicações da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial do século XX.

 Por volta do ano 2000, começam a ser aplicados nas redes digitais programas que tornavam os computadores decodificadores de linguagens semânticas, o que mudou o formato e o funcionamento dos buscadores de informação. O Google surge neste momento, com a forma”inteligente” de responder a qualquer pergunta do usuário/navegante. As máquinas passam a conversar entre si, a ter a capacidade de compreender e interpretar dados. O que trouxe esta mudança foi a conformação da web, a rede www, na estrutura semântica, o  que se reflete nos dias de hoje em aparelhos que corrigem e sugerem textos e emoticons que aprendem o vocabulário de quem usa o aparelho, que faz chamada telefônica ao “ouvir”o nome solicitado pelo dono.

 A semântica estuda a relação entre as palavras e as coisas, ou seja, entre linguagem, pensamento e conduta. A web semântica funciona pela construção de vocabulários, que tratam de palavras e sentidos, e de ontologias, que organizam a informação para que ela sempre possa ser acessada. Esta conjugação permitiu a criação de sistemas capazes de interpretar as informações, relacionar palavras e seus conhecimentos profundos, reduzir a ambiguidade existente nas buscas da web. Os resultados são específicos e ampliam as possibilidades de pesquisa, com a apresentação de dados relevantes, eliminando os resultados com menor importância à questão pesquisada.

Esta semântica da web é construída pelo algoritmo, que orienta as máquinas sobre como devem processar a informação, e se consubstancia pela linguagem do AV3, que invade nosso dia-a-dia em vídeos, textos, áudios, imagens das mais variadas, em uma composição narrativa transmídia. Esta narrativa, que transparece desse entrelaçamento de linguagens e estrutura semântica, é construída, na web, coletivamente, socialmente, mistura a linguagem formal e culta, oferece linguagens que possam ser compreendidas porto do o planeta, independente da língua local.

 Esta visão de que a web semântica coroa o aprendizado coletivo, como propõe o filósofo Pierre Lévy, é a utopia. No mundo real, as máquinas passam a produzir algoritmos que definem novas regras a partir do uso das pessoas. Se o indivíduo marca determinadas mensagens como spam em sua caixa de e-mail, o sistema passa a considerar as informações com aquelas palavras-chave como spam e reprograma o algoritmo que separa os spams das mensagens “boas”. Se, por um lado, parece cômodo um separador de notícias indesejáveis, é bastante incômodo perceber que, permanentemente,as notícias da caixa de e-mail são monitoradas. Vale para os e-mails e para todos os usos de informação e comunicação mediados por aparatos computacionais.

 IIRede e poder: o olhar sobre alguns atores em particular

 O contexto das democracias liberais atuais alimenta o paradoxo entre a igualdade política formal e profundas desigualdades sociais, em que consideramos a exclusão digital um dos reflexos dessa situação.Estas desigualdades também são permeadas pela tecnologia. Mais especificamente, são estruturadas a partir de um discurso gestado no Vale do Silício, a região que vendeu a ideia de que a tecnologia era fruto do livre pensar de jovens talentosos reunidos em garagens familiares.

O Vale do Silício pode ser analisado como o triunfo da ideologia neoliberal no pós-Guerra Fria, em que a identidade do consumidor se sobrepõe à do cidadão. Há um complexo industrial em torno do Vale do Silício,que torna necessário observar as minúcias econômicas e geopolíticas, o papel preponderante que ele tem na arquitetura fluida e em constante evolução do capitalismo global. Este grupo ressalta uma visão de que as pessoas, com seus recursos, podem produzir bens de modo altruísta e fora do âmbito do mercado e que,portanto, não há necessidade de financiar bens públicos, como conhecimento e cultura, pois a coletividade faz de graça ou se financia via vaquinhas virtuais (o crowdfunding). Outra marca do Vale do Silício é a defesa da “livre circulação de dados” em tratados internacionais, um eufemismo para a livre circulação do capital.

 A tecnologia, como está estruturada, forma uma cerca invisível, capaz de registrar todos os movimentos, inclusive faciais, que servem paratudo: prevenir crimes, avaliar os alunos de ensino a distância,oferecer coisas que as pessoas nem imaginam que precisem. Para isto,usam os dados das pessoas, trocados por serviços e aplicativos“gratuitos”, e esses dados se tornam ativos rentáveis, a parte da economia compartilhada que só rende para os rentistas. A partir desta concentração de informação, a privacidade passa a custar –seja pela aquisição de espaço digital, seja pela contratação de especialista no tema, seja para aprender a usar. Esta visão tecnológica se constrói em torno de uma epistemologia simplista de que a análise dos dados é capaz de resolver os problemas do mundo e de dar respostas seguras para as pessoas. Nesta ideologia tecno-utópica do Vale do Silício, não há mais luta de classes, a união do Big Data com os algoritmos salvou a todos.

A tecnologia é importante, e mesmo imprescindível, mas é preciso organizar as relações e atacar o apoderamento indevido dos dados dos indivíduos, bem como a manipulação, também indevida, desses dados, por meio de algoritmos que regulam nossa vida. Neste sentido,é preciso reintroduzir a política e a economia no debate, pois aplicativos não combatem a pobreza e nem a discriminação racial.Os valores da democracia não cabem em uma fórmula e são difíceis de quantificar. A premissa básica da democracia está em garantir o direito de discordar, de debater e a busca por arranjos possíveis. A democracia sobrevive por ser imperfeita.

Quando se coloca no centro da discussão a Inteligência Artificial,por meio de algoritmos que se recriam via web semântica, o que se promete é a perfeição fruto da racionalidade, simplificada em aplicativos que resolvem todos os problemas. As relações humanas são complexas, a computação, a partir das fórmulas elaboradas em diversas combinações de zero e um (de sim e não), representa a simplificação de momentos, que nos ajudam a sobreviver no mundo complexo. Os computadores não têm a capacidade humana de narrar a realidade a partir de um ponto de vista histórico e ideológico. Apolítica baseada em inteligência artificial é a política de gerenciar efeitos. Um buraco na rua pode ser identificado via aplicativo, mas a política sobre as ruas sem buraco são fruto dos acordos da sociedade, com, por exemplo, a escolha dos representantes políticos.

Esta lógica tecno-utópica assenta-se no que denomina “economia do compartilhamento”, que se resume a uma troca básica: para usufruir da gratuidade de programas, aplicativos e informações, as pessoas precisam, apenas, deixar seus dados disponíveis. Esses dados são usados e a vida dos sujeitos passa a ser moldada a partir deles. É um instrumento de dominação. Quem sebeneficia? Principalmente, as plataformas“gratuitas”, extrativistas de dados que monetizam esses dados em acordos com empresas de telefonia, prefeituras, serviços disfarçados de inclusão digital. São monopólios impulsionados pelos efeitos em rede. A Uber conecta passageiros a motoristas, o AirBnB põe hóspedes e anfitriões em contato, a Amazon intermedeia vendedores e compradores.

 As plataformas digitais produziram um estado de bem-estar privatizado.Parte de nossas atividades cotidianas são subsidiadas por grandes empresas financeiras e de tecnologia em troca de nossos dados. O fundo que banca a Uber, por exemplo, é formado pelo governo da Arábia Saudita e pelo Goldman Sachs. Na prática, podemos considerar que há cinco grandes plataformas: Apple, Microsoft, Google, Facebooke Amazon. As startups e aplicativos querem ser engolidas por elas, em troca de polpudas remunerações que buscam, obviamente, os dados ali reunidos. Estas plataformas são os imensos hubs da internet e precisam de fluxo contínuo e rápido das informações – mesmo as falsas – pois ganham dinheiro com isso.

Cabe ressaltar que outro ator importante neste processo é a nuvem,onde ficam armazenados dados e informações. Onde ela fica? Em imensos armazéns, localizados em território estadunidense, com computadores capazes de guardar grande volume de dados. Ali, em espaço conjugado, também fica a NSA,a agência de segurança dos Estados Unidos, que acumula dados para vigiar as pessoas. Esta acumulação de dados serve para que o governo promova o controle da população a partir de uma estrutura de vigilância gigantesca e sigilosa. Uma pessoa que digitou mochila e panela de pressão, na busca do Google, em 2013, logo após uma tentado ocorrido em Boston, teve a casa invadida pelos órgãos de segurança. As duas palavras-chave, combinadas, acabara de entrar para o rol de palavras vigiadas, por conta de ações terroristas.

Algumas reflexões

Não se trata de demonizar, nem de endeusar a tecnologia. A descoberta e o domínio do uso do fogo representou um salto da civilização humana.As divisões de classe não desaparecem porque todos têm acesso às tecnologias, elas acabam se refletindo na forma como as pessoas acessam. A automação é de baixa qualidade para os pobres e é sob medida para os ricos, por exemplo, que têm os dados preservados por diversos meios – muitos no formato de legislação. A liberdade não se adquire no mercado, é fruto de lutas coletivas na arena política.Os partidos são redes importantes a interferir nesses contextos. As pautas identitárias, assim como a questão da tecnologia, devem ser inseridas no campo da divisão de classes, também. Neste sentido,devem ser trabalhados os conceitos que envolvem a liberdade:autonomia, direitos, deveres, coletivo, individual, privacidade. A universidade, por meio do tripé que a justifica constitucionalmente– ensino, pesquisa e extensão –, tem muito a contribuir nesta tarefa de criar uma cultura da informação e da comunicação que leve esses fatores em conta.

Professora Márcia Marques, Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília (UnB)

Notas

1 Ambiente digital pode ser definido como qualquer espaço de acesso mediado pela tecnologia digital, em que as pessoas interagem: e-mail, mídias digitais, o caixa eletrônico, o caixa do supermercado que identifica o cliente preferencial ao digitar o CPF, por exemplo.

2AnimaVerbiVocoVisualidade é conceito criado pelo pesquisador e poeta Antonio Miranda, ex- diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, que tomou por referência a denominação que os concretistas davam aos poemas visuais que produziam: a verbivocovisualidade.

Referências

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MIGUEL,L. F. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo, Boitempo, 2018.

 MOROZOV,E. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. SãoPaulo, UBU Editora, 2018.

SIMEÃO,E.; MIRANDA, A. Comunicação Extensiva e a linguagem plástica dos documentos em rede. In: MEDLEG, G. R.; LEITE, I. (Org.). Representação e Organização do Conhecimento: Série estudos avançados em Ciência da Informação. Brasília: UnB/CID,2003.

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